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O retrocesso nas conquistas de direitos das famílias simultâneas - Tese 529 STF

Por Cecília Barros - Advogada de Direito das Família e Sucessões

Família é resultado da comunhão de vidas e da afetividade. A relação familiar impacta na vida de todo cidadão no âmbito emocional, social e patrimonial. Considera-se formada a família, além daquela pelo casamento, quando presentes ao menos três elementos: o afeto, a estabilidade e a ostensividade nas relações.

O casamento é a declaração formal à sociedade da consituição daquela família, que a partir disso, terá proteção patrimonial. A união estável, mesmo sendo informal, a partir do reconhecimento do afeto, da estabilidade e da ostensividade, recebe igual proteção. Tais requisitos podem ser encontrados em mais de um arranjo familiar ao mesmo tempo, nas famílias simultâneas ou paralelas.

Em comum ao casamento e à união estável estão os requisitos da fidelidade e exclusividade, deveres decorrentes da monogamia, que impede o estabelecimento de dois núcleos familiares simultâneos. Ocorre que as familias simultâneas são resultado de comunhão de vidas e da afetividade em mais de um núcleo e são realidade mais ampla que se pode do que se pode supor. É sabido que o homem é vértice dessas famílias, e que muitas vezes oculta a existência umas da outras.

Quando as relações paralelas vêm à tona, em regra, os prejuízos são suportados pelas mulheres da relação formal e da relação informal, na ordem moral e patrimonial. Em grande parte dos casos, a família informal necessita do seu reconhecimento jurídico para requerer importantes direitos de ordem patrimonia e até de subsistência.

Apesar da forma tímida e restrita, a jurisprudência gaúcha, ensaiou proteção às famílias paralelas, sendo a dos mais relevantes o julgamento do recurso 70082663261¹, em que, por maioria, a Oitava Câmara Cível reconheceu direitos patrimoniais à companheira sobrevivente de um relacionamento em que o homem mantinha outro núcleo familiar conjugal simultâneo.

Naquela família, os envolvidos tinham conhecimento das relações simultâneas, e o julgado reconheceu que, em havendo transparência entre todos os envolvidos na relação, os impedimentos impostos nos artigos 1.521, inciso VI, e artigo 1.727, ambos do Código Civil, caracterizariam demasiada intervenção estatal, devendo a vontade das partes em viver naquela situação familiar ser respeitada, em razão do afeto ser o elemento que deve nortear o direito de família contemporâneo.

O julgado registrou, ainda,  que “o princípio da monogamia e o dever de lealdade deveriam ser revistos diante da evolução histórica do conceito de família, acompanhando os avanços sociais. Não pode perdurar a velha compreensão fundada exclusivamente na prevalência do matrimônio, como se outros institutos não tivessem o mesmo prestígio.”
Não obstante, o entendimento do Tribunal gaúcho encontra, agora, intransponível óbice a partir da tese 529 firmada pelo Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral: “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.”

Pode-se dizer que estamos diante de um retrocesso, visto que privilegiados o dever de fidelidade e da monogamia em detrimento das relações estabelecidas pelos cidadãos em razão do afeto e no exercício de sua autonomia de vontade. Observe-se que o Supremo Tribunal alçou a monogamia ao patamar de princípio constitucional, em afronta ao princípio da pluralidade das entidades familiares.
A tese do tema 529 tratou-se muito mais de um julgamento moral que de um julgamento jurídico. Princípios constitucionais como a igualdade, que, como nenhum outro, provocou profunda transformação do direito das famílias e estabeleceu a premissa da igualdade entre homens e mulheres, entre filhos e entre entidade familiares, foi relativizado perante questões de cunho eminentemente moral.

¹Apelação Cível Nº 70082663261, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Antônio Daltoe Cezar, Julgado em 08/10/2020; Apelação Cível Nº 70069630424, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 13/07/2017; Apelação Cível Nº 70024804015, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 13/08/2009; Apelação Cível Nº 70010787398, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 27/04/2005. No Âmbito da Justiça Federal o TRF4: TRF4 5010311-25.2019.4.04.9999, QUINTA TURMA, Relatora ELIANA PAGGIARIN MARINHO, juntado aos autos em 27/09/2019.

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